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CONCLUSÃO DO NOSSO TRABALHO ACERCA DA VIDA DE SÃO PAULO


Conclusão do nosso trabalho acerca da vida de São Paulo

                        
Parece fácil notar que atividade incansável e sempre criativa e bem motivada atividade evangelizadora de Paulo, em meio a muitas adversidades, era sustentada por uma bem cultivada relação pessoal com Jesus Cristo. E o fato fundante foi a experiência de Damasco. Foi naquele encontro que começou, e que conheceu desdobramentos surpreenden-tes, todo o seu dinamismo espiritual.
                        
As epístolas deixam entrever um homem de emoções intensas, de alegrias, de dores, de angústias, de esperanças. Era um homem que tinha projetos para o futuro, que era consciente dos seus limites, que cultivava e preservava sua identidade (apóstolo) e zelava por sua missão. Era capaz de relações profundas e duradouras, afeito a amizades e à colaboração. Ele falava sem censuras dos seus sentimentos mais profundos, das amarguras que o ministério lhe reservava, das motivações que o sustentavam. Ele não ocultava, nem nas boas coisas, nem nas realidades mais adversas. E isso demonstra que era um homem de ótima integração psicossomática, que tinha um centro unificador para sua vida. E era Jesus Cristo: “Para mim viver é Cristo” (Fl 1,21). Por causa dele valia a pena perder tudo, renunciar a tudo, reduzir seu corpo à servidão, viver sobriamente na abundância e na necessidade. Em uma palavra, a intimidade com Jesus Cristo configurou sua liberdade. E tornou-se um homem extremamente livre e totalmente entregue à causa do seu Senhor.
                        
O próprio Paulo sugere como era ele antes do encontro com Jesus Cristo. Já antes era um tipo de paixões fortes e decisões corajosas. Era apaixonado pelo judaísmo. Por isso “perseguia sobremaneira”, chegava às raias do fanatismo. Parecia ser afeito à emulação, pois diz que “progredia mais que os compatriotas de minha idade” (Gl 1,14). Era-lhe interessante distinguir-se no zelo pelas tradições paternas. Em favor das mesmas até a violência recebia legitimidade. Quando seguidor de Jesus Cristo e anunciador do seu evangelho, face a presença de outros pregadores, também cristãos, mas que perturbavam as comunidades por ele fundadas e comprometendo a mensagem anunciada, então sim afloraram seus traços de indignação e de intransigência. Todavia, já não era o homem violento. Não disputava espaços ou prerrogativas. Na realidade, até sua linguagem dura, a história o mostrou, era parte da fidelidade que o sustentou até mesmo na prisão e no martírio.

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SÃO PAULO E SUA RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES


4.4 – São Paulo e sua relação com as Comunidades

                        
As relações entre o pastor e suas comunidades tornam-se um precioso meio para revelar os traços humanos e pessoais do primeiro. Seus afetos, seus zelos, sua capacidade de perdoar, de compreender, de liderar, de suportar retratam as disposições de fundo do servidor. A evangelização é um campo precioso e preciso no qual o homem, o discípulo e o pastor iluminam-se reciprocamente. Lançar, pois, um olhar atento sobre a linguagem, sobre as expressões de comunhão e de conflitos entre Paulo e suas comunidades é um caminho rico de possibilidades para reconhecer traços da personalidade de Paulo, um homem que preferia não falar de si.
                        
Pode-se notar que o evangelizador corajoso também se portava com grande zelo e sensibilidade. São belas suas expressões aos Coríntios: “E isto sem contar... minha preocupação quotidiana, a solicitude que tenho por todas as Igreja. Quem fraqueja, sem que eu me sinta fraco? Quem cai, sem que também eu fique febril?” (2Cor 11,28-29). Vislumbra-se nestas linhas, mas também em muitas mais, uma extraordinária participação de coração na vida das pessoas e das comunidades. Aos Tessalonicenses, por exemplo, expressa-se ora com sentimentos maternos, ora paternos (1Tes 2,7-8; 2,11-12). Apenas um exemplo: “Apresentamo-vos no meio de vós... como uma mãe que acaricia seus filhos... desejávamos dar-vos não somente o evangelho, mas até a própria vida, de tanto amor que vos tínhamos” (2,7-8). Paulo percebera que não é possível evangelizar sem afetos oblativos. Conjugou de maneira admirável missão e afeição.
                        
O afeto pastoral o guia até mesmo quando lhe toca falar com severidade. A respeito de uma carta enviada aos Coríntios, “escrita em meio a muitas lágrimas”, ele especifica: “Escrevi... não para vos entristecer, mas para que conheçais o amor transbordante que tenho para convosco” (2Cor 2,4). Suas reações não eram as do autoritário, zeloso por suas prerrogativas de comando, mas do servidor atento ao caminhar de sua comunidade. Era expressão da doação de si mesmo. Isso pode ser observado na mesma epístola: “Quanto a mim, de bom grado... me despenderei todo inteiro a vosso favor” (12,15).
                        
É verdade, ele não esconde suas atitudes de um zeloso paraninfo. Mas o faz com desprendimento: “Experimento por vós um zelo semelhante ao de Deus. Desposei-vos a um esposo único, a Cristo, a quem devo apresentar-vos como virgem pura” (2Cor 11,2). Subjacente a esta imagem está a tradição vétero-testamentária do noivado e casamento. O pai da esposa assume o dever de conservar a filha intacta para o esposo. Neste versículo e esposo é Cristo. É para este amor, o da esposa com o esposo, que Paulo se volta zelosamente.
                        
Entretanto, Paulo não somente se afeiçoa às suas comunidades. Deseja delas seus afetos. Precisa da reciprocidade das mesmas. Sempre aos Coríntios, eis o seu pedido: “Pagai-nos com igual retribuição. Falo-vos como a filhos: dilatai também os vossos corações” (2Cor 6,13). Também aos Gálatas manifesta sua dor por ter sido preterido: “Recebestes-me como um anjo de Deus, como Cristo Jesus...dizendo-vos a verdade eu me tornei vosso inimigo?” (Gl 4,14.16). E gosta de ser afetuosamente recordado: “Agora Timóteo voltou...trazendo-nos boas notícias... afirmando que guardais sempre afetuosa lembrança nossa...”. E todo este afeto se torna oração e realimenta a espiritualidade. Ele reza por suas comunidades (Rm 1,9-10; Fl 1,4) e solicita das mesmas participação nos seus projetos mediante a intercessão (Rm 15,30-31).
                        
Nas relações com as comunidades, Paulo mantém a dinâmica do servo. Não é comunidade a servi-lo, mas ele se faz servo da comunidade. Os seus adversários, que se apresentavam com ares de liderança, superestimavam sua própria projeção espiritual (2Cor 11,4-7). Seu princípio é outro: “Não tencionamos dominar a vosaa fé, mas colaboramos para que tenhais alegria.” (2 Cor 1,24), pois que ele tem bem presente qual é o seu lugar entre Jesus Cristo e as comunidades. Ele é servidor, cuja origem e fundamento é Jesus Cristo: “Não proclamamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, Senhor. Quanto a nós mesmos apresentamo-nos como vossos servos por causa de Jesus” (2Cor 4,5). Sua justa auto-estima funda-se na condição de servidor generativo, isto é, “ainda que tivésseis dez mil pedagogos... fui eu quem pelo evangelho vos gerou em Cristo Jesus” (1Cor 4,15).
                        
Consciente da sua condição de servo, Paulo renunciou a manifestações espetaculares de suas faculdades carismáticas. Escolheu vias mais modestas, porém com mais efeitos para a maturação das suas comunidades: “Dou graças a Deus por falar em línguas mais do que todos vós... mas prefiro dizer cinco palavras com minha inteligência, para instruir também os outros, a dizer dez mil palavras em línguas” (1Cor 14,19-20). Não busca a projeção e admiração de si mesmo. Vale muito mais para ele o convencimento: “Compenetrados, pois, do temor do Senhor, procuramos convencer os homens” (2Cor 5,11).
                        
Todavia, com os adversários, com aqueles que se interpõem entre ele e as suas comunidades e lançam dúvidas sobre a verdade do evangelho por ele anunciado, suas palavras são cortantes: são “falsos irmãos” (2Cor 11,26), são falsos apóstolos e operários enganadores, que atuam como se fossem ministros de Satanás (11,13-14). As palavras parecem tomadas do modelo da crítica aos falsos profetas, contra os quais o profeta Jeremias foi veemente (cf. Jr 23, 9ss). Emprega com ironia aos seus adversários judaizantes o mesmo epíteto que no judaísmo palestinense valia para os pagãos: Cuidado com os cães (Fl 3,2). 

Não se tratava de incompatibilidades subjetivas. O que estava em jogo era o Evangelho de Jesus Cristo na sua forma mais pura e originária, como lhe havia revelado o Senhor. E seu ministério recebera a aprovação de “Tiago, Cefas e João” que lhe haviam estendido a mão em sinal de comunhão (Gl 2,9). Afinal, Paulo compreendera que sem a comunhão com os apóstolos estaria “correndo em vão”. Por isso mesmo, o evangelizador determinado e vigoroso subiu a Jerusalém e expôs a eles o evangelho que proclamava aos gentios. Os apóstolos, por sua vez, reconheceram que a Paulo “fora confiado o evangelho dos incircuncisos” (Gl 2,7).

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SÃO PAULO E SUA RELAÇÃO COM DEUS


4.3 – São Paulo e sua relação com Deus

                        
Qualquer abordagem sobre a personalidade e os comportamentos de Paulo necessariamente requer a atenção voltada para esta dimensão fundamental, que configurou todas as outras áreas da vida do grande apóstolo. Deus não apenas o fundamento de sua existência. Era também o objeto de sua paixão. Fora ensinado, desde os seus primeiros dias, a amá-Lo com “todo o coração, com toda a alma, com toda a força, com todo o entendimento. Por sua experiência judia interpretava que era Deus quem guiava seu povo e os filhos do seu povo. Era assim que o Paulo cristão, apóstolo e evangelizador, se reconhecia diante dEle. Por isso mesmo perscruta as determinações de Deus sobre a oportunidade de ir a Roma (Rm 1,10), ou retornar uma outra vez a Tessalônica (1Ts 3,11). Afinal está convicto de que “Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam, daqueles que são chamados segundo o seu desígnio” (Rm 8,28).
                        
Daí segue o grande apreço pela oração e pela constância de seu comportamento orante. No exórdio de suas cartas, exceto em Gálatas, há sempre oração de ação da graças. Ele tem presente consigo aqueles por quem ora; sua oração conserva sintonia com as suas necessidades. Muito ilustrativo é o texto de 1Cor 3,6-10: um planta, outro rega, mas Paulo está convencido de que estéril colocar fundamentos, plantar, regar se Deus não atuar. Muitos cooperam, mas é Deus quem dá o crescimento. Para Paulo a oração é, pois, um meio irrenunciável para suas realizações pastorais.
                        
Paulo ora incessantemente, com gratidão a Deus, pelos progressos de suas comunidades. Mas em sua súplica integra também suas necessidades pessoais. Por três vezes implorou ao Senhor que o livrasse do seu “aguilhão na carne” (2Cor 12,8). O número três acentua a insistência do orante. Não foi atendido. A resposta tomou outra direção: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder”. A resposta foi negativa, mas com valência positiva, pois indicou com clareza e conferiu sentido ao destino de sofrimento do apóstolo orante. Na oração Paulo parece ter reconhecido que o sofrimento não desintegra as pessoas, mas é a ocasião para que a potência de Cristo, crucificado e ressuscitado, produza frutos através de fraqueza do seu discípulo.
                        
Um outro aspecto importante da espiritualidade de Paulo, com incidências em sua vida concreta e em sua personalidade, pode ser acentuado a partir do tema da “comunhão com Cristo”. Aparece tipificada na expressão paulina “em Cristo”. A espiritualidade pessoal de Paulo estava totalmente centrada em Jesus Cristo. Desta comunhão com Ele interpretou a liberdade do cristão: “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). Porque livre pôs-se à disposição do Senhor e das suas comunidades, em posição de obediência: “Ainda que livre em relação a todos, fiz-me servo de todos, a fim de ganhar o maior número possível”. (1Cor 9,19). E novamente sua vida com Cristo qualifica-o para afrontar com grandeza e dignidade o sofrimento: “Somos atribulados por todos os lados, mas não esmagados; postos em extrema dificuldade, mas não vencidos pelos impasses; perseguidos, mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados... trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja manifestada em nosso corpo” (2Cor 4,8-10). Este é o caminho paradoxal mediante o qual Paulo viveu sua condição de homem livre em Jesus Cristo.

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SÃO PAULO E SUAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS


4.2 – São Paulo e suas relações interpessoais
                       
                        
Em seus escritos Paulo nunca menciona pais, irmãos ou parentes. At 23,16 é a única menção de que tinha uma irmã e sobrinho em Jerusalém. É uma informação imprecisa, que requer cautela na hora de tirar conclusões. Questão diversa é a sua posição face ao matrimônio. Em 1Cor 7,7 Paulo aconselha o estado célibe. Ele mesmo é assim. É verdade que tal juízo estava sob o influxo da espera iminente da parusia do Senhor. “O tempo se fez curto... e a figura deste mundo passa” (1Cor 7,29.31). De qualquer forma, segundo palavras do próprio Paulo, à diferença dos outros apóstolos, ele renunciou a ter esposa (1Cor 9,5). Tudo para melhor cuidar “das coisas do Senhor” (cf. 7,32). Na realidade, para Paulo seria muito difícil ter uma família e esperar dela que suportasse as mesmas fadigas que carregou consigo como apóstolo e missionário. 
                        
Paulo não foi celibatário por um puro ascetismo, entendido como fim em si mesmo. É verdade sua vida foi marcada por muitas privações e mortificações. Mas como ele mesmo explica, “os atletas se abstêm de tudo; eles para ganharem uma coroa perecível; nós, porém, para ganharmos uma coroa imperecível” (1Cor 9,24). Porque fora alcançado por Jesus Cristo quer participar dos seus sofrimentos, buscando assim alcançar a Ressurreição com Ele (Fl 3,12-14). É por esta razão que embora o homem exterior se desmorone, o homem interior se renova cada dia (1Cor 4,16). Aliás, por causa de Jesus Cristo ele se fez judeu para ganhar os judeus; portou-se como se vivesse sem a Lei para conquistar os que os que não estavam sujeitos a ela; fez fraco com os fracos; tudo “por causa do evangelho, para dele me tornar participante” (1Cor 9,19-23).
                        
A avaliar pela independência das decisões de Paulo, pela originalidade de seu pensamento, pelos seus dotes de liderança, poder-se-ia pensar que se tratava de um individualista. Mas ele mesmo mostra que não era um sujeito voltado para si mesmo. O fato de fundar comunidades e reunir em torno a si muitos colaboradores indica que era capaz de missionar com os outros, de trabalhar em equipe e de estabelecer relações de amizades. Seu relacionamento com Timóteo, o mais próximo dentre os que com ele colaboravam, era matizado por sentimentos paternos: “como filho ao lado do pai, ele serviu comigo à causa do evangelho” (Fl 2,22). Era também capaz de aceitar serviços e participações. Da mãe de Rufo, no capítulo das saudações da epístola aos romanos, Paulo diz que se tornou mãe também para ele (Rm 16,13). Era grato a Prisca e Áquila, seus colaboradores que arriscaram a própria vida para para salvá-lo (Rm 16,3). Na realidade todo o capítulo 16 da epístola aos romanos é um testemunho eloqüente da capacidade de Paulo de estabelecer vínculos de amizade.
                        
O homem de personalidade forte e determinada, capaz de não retroceder face às situações mais desafiadoras, que não procurava notoriedade para si mesmo, que evitava falar de si e renunciava com liberdade os seus direitos de evangelizador, era, todavia, muito espontâneo em expressar seus sentimentos. Quando se deterioraram as relações com a comuni-dade corintia, escreveu-lhes uma carta impregnada de aflição: “Em grande tribulação e com o coração angustiado que vos escrevi em meio a muitas lágrimas...” (2Cor 2,4). Apesar do estado crítico das relações com eles sente-se profundamente unido a eles; usa expressões fortes para ilustrar seus afetos por eles: “Estais em nosso coração para a vida e para a morte” (7,3).
                        
Sua cordialidade emerge à superfície particularmente com Onésimo, o escravo fugido, em favor de quem intercede cm seu escrito a Filêmon. E o faz com as mais intensas expressões de seus sentimentos paternais. Já ancião e encarcerado, escreve: “Venho suplicar-te em favor de meu filho Onésimo, que gerei na prisão... ele é como se fosse meu próprio coração”. Aliás, quando se trata de sentimentos do coração (sentimentos “entranhados”), Paulo não pode se referir ao povo de Israel, endurecido, sem que se lhes “comovam a entranhas”. Em Rm 9,2-3 ele adota uma fórmula muito singular para exprimir o ardor do sentimento que o mantém ligado ao seu povo: “Tenho grande tristeza e dor incessante em meu coração. Quisera eu mesmo ser anátema, separado de Cristo em favor dos meus irmãos...”.  Sem dúvida é uma linguagem forte, excessiva, mas que se presta muito bem para ilustrar o vigor sentimental de Paulo. 

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SÃO PAULO E OS GRANDES TRAÇOS DE SUA PERSONALIDADE

4 – São Paulo e os grandes traços de sua personalidade

4.1 – A “pequenez” do homem e a grandeza do Apóstolo

As cartas de Paulo são o caminho possível para se aceder, ainda que apenas parcialmente, a importantes traços da personalidade deste evangelizador por excelência. Acerca de sua pessoa muitas interrogações podem ser formuladas. Que tipo de homem era, como pensava, como vivia, como reagia? Era de caráter dócil ou inflexível? Como eram suas relações com o mundo, com seus semelhantes? As perguntas poderiam se enumerar. As epístolas, todavia, oferecem apenas pistas. Muitas questões permanecerão sempre no âmbito das hipóteses. O que segue é uma tentativa de conjugar os grandes traços de sua personalidade partindo do que ele mesmo deixou entrever.
                        
De muitas maneiras se poderia falar da fortaleza que movia Paulo a se manter profundamente identificado com sua missão. Os enfoques podem ser multíplices. Aqui se preferirá observá-lo a partir de realidades contrastantes vividas por ele. E uma primeira anotação pode ser tomada da sua condição de enfermidade. Ao que parece, Paulo não era favorecido pela saúde. Pouco dado a falar de questões pessoais, por várias vezes suas páginas referem sua situação de doença. Em Gl 4,13-14 se pode ler: “Bem o sabeis, foi por causa de uma doença que eu vos evangelizei pela primeira vez. E vós não mostrastes desprezo nem desgosto...”. Com certeza isso não passava desapercebido por parte das comunidades. O “aguilhão na carne”, que ele sentia como “golpes de Satanás”, entre outras possíveis interpretações, deixa entrever que se tratava de algum mal que lhe causava muitas dores físicas. 

É no quadro de sua enfermidade aparece logo um dos fortes contrastes que marcaram admiravelmente sua personalidade: apesar de suas debilidades físicas, foi extremamente forte na realização de uma missão excepcional. É só pensar nos açoites, nas flagelações, nos naufrágios, na lapidação; ou ainda nos caminhos difíceis, inóspitos e escarpados que percorreu (Licaônia, Capadócia, Galácia), ou nos perigos que atravessou (2Cor 11,26-27: “...Perigos nos rios... perigos no deserto, perigos no mar... fadigas, duros trabalhos, numerosas vigílias, fome e sede, múltiplos jejuns, frio e nudez”). Com certeza, todos estes embates comprometiam sua vitalidade física. Com justeza podia ele escrever: “Trago em meu corpo as marcas de Jesus” (Gl 6,17). Mas nunca desanimava porque quando se reconhecia fraco, então experimentava a força (2Cor 12,10). 

Outros traços que revelam, por via de contraste, a grandeza da personalidade de Paulo são suas atitudes frente aos adversários. Jogavam-lhe em rosto que era modesto quando estava presente entre os coríntios e corajoso somente quando estava distante (2Cor 10,1). Diziam que suas cartas eram “severas e enérgicas, mas ele, uma vez presente, é homem fraco e sua linguagem é desprezível” (2Cor 10,10). A fraseologia poderosa sugeria uma personalidade vigorosa, mas seu falar não suscitava impressão. Talvez no confronto com seus oponentes, especialmente os de Corinto, tenha experimentado o gosto amargo da derrota. Cabe supor que quando se tratava de fazer valer a própria pessoa, Paulo adotava atitudes de modéstia. Quando se viu constrangido a enaltecer a si mesmo, advertiu que falava “como um insensato, certo de ter motivo de me gloriar” (2Cor 11,17). Com isso dava a entender quanto lhe era incômodo evidenciar a si mesmo. Entretanto, quando se tratava de defender o evangelho e de sustentar a causa de seu Senhor, então era extremamente forte . 

A tensão entre a modéstia pessoal e a magnitude de sua missão expõe de maneira admirável a condição humana do apóstolo. Ele não esconde este duplo aspecto. É só observar a fineza, quase timidez, com que se apresenta à comunidade dos romanos, que ele desconhecia: “Realmente desejo muito ver-vos, para vos comunicar algum dom espiritual... ou melhor, para nos confortar convosco pela fé que nos é comum a vós e a mim” (Rm 1,11s). Ao final de sua ampla reflexão formulou: “Contudo, vos escrevi, e em parte com certa ousadia, mais no sentido de avivar a vossa memória, em virtude da graça que  me foi concedida por Deus, de ser ministro de Cristo Jesus junto às nações, a serviço do evangelho de Deus...” (Rm 15,15-16). 

Aos coríntios não ocultou sua ansiedade: “Estive entre vós cheio de fraqueza, receio e tremor” (1Cor 2,3). Mas também estava disposto a reagir com muita energia contra a auto-suficiência de Corinto (2Cor 10,16), pois que entre eles atuou com os sinais do apóstolo: “paciência a toda prova, sinais milagrosos, prodígios e atos portentosos” (12,12). Mas quando se tratava de salvaguardar o “Evangelho de Cristo” não se poupava das palavras mais contundentes, como em Gl 1,8.9:  “Se alguém vos anunciar um evangelho diferente do que recebestes, que seja consagrado à maldição.

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SÃO PAULO DE PERSEGUIDOR A PERSEGUIDO


3.3 – São Paulo de perseguidor a perseguido

Por várias vezes o livro dos Atos deixa ler alguns traços das disposições interiores de Paulo em relação aos seguidores de Jesus antes de ser “alcançado por Jesus Cristo”. A primeira menção está em 7,56.8,1. Para evitar de colocá-lo como participante ativo no apedrejamento do primeiro mártir, Estevão, ele é apresentado como alguém que aprova a punição violenta (8,1) a quem, supostamente, falava contra o templo e contra a Lei (cf. At 6,13). Em 8,3 ele “devastava” a Igreja. O verbo lumai,nomai (devastar) é forte e comporta a idéia de violência física e moral. Usado no imperfeito indica uma atividade continuada, não limitada a fatos isolados. 

As outras narrativas estão ligadas à experiência de Damasco. Em 9,1-2 as frases indicam comportamentos de virulência ainda maior do que “devastar a Igreja”. Assim se lê: “Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos do Senhor...pediu cartas para as sinagogas de Damasco”. A expressão “respirando ameaças” (evmpne,wn avpeilh/j) é caso único no Novo Testamento. Equivale a “estar repleto de” e sugere algo do comportamento animoso do futuro apóstolo. Ele estava inteiramente tomado pelo seu projeto de zelar pela Lei a qualquer custo e em qualquer lugar. Para tanto afiguravam-se-lhe como acertados os seus ânimos violentos. 

É por isso que nos outros dois relatos, expressos em forma de apologia, o Paulo lucano fala das motivações de fundo que suscitavam nele movimentos tão fortes perseguição. Em At 22,4 se lê: “Persegui de morte o este Caminho, prendendo e lançando à prisão homens e mulheres...”.  Por estas palavras vê-se que os gestos concretos eram prender e lançar à prisão; todavia os sentimentos e intenções visavam a destruição do assim chamado Caminho (“persegui de morte”). E tais escolhas se explicavam porque Paulo era “cheio de zelo por Deus” (22,3). 

Nesta mesma direção seguem as palavras ante o rei Agripa, sempre em tom de apologia: “Parecia-me necessário fazer muitas coisas contra o nome de Jesus...Quando eram mortos eu contribuía com o meu voto... por meio de torturas quis forçá-los a blasfemar; e, no excesso do meu furor, cheguei a persegui-los em cidades estrangeiras” (At 26,9-11). Para dizer que se lhe afigurava “necessário” hostilizar o nome de Jesus, Paulo emprega o verbo dei/, que no Novo Testamento é característico para aludir a um desígnio divino. Em confronto com os textos anteriores percebe-se que a atividade do perseguidor enquadra-se em uma espécie de “crescendo narrativo” nas diversas dimensões: no ódio, na extensão, na gravidade e variedade dos suplícios. 

Não Lucas, mas o próprio Paulo aborda sua refere a sua obstinação perseguidora. Em Gl 1,13, Paulo recorda a sua “conduta de outrora, no judaísmo, de como perseguia sobremaneira e devastava a Igreja de Deus” (o[ti kaqV u`perbolh.n evdi,wkon th.n evkklhsi,an tou/ qeou/ kai. evpo,rqoun auvth,n). Esta lembrança é feita em relação ao discurso apologético sobre a origem e fundamento do seu evangelho. Perseguir “sobremaneira” (kaqV u`perbolh.n) é uma expressão preposicional que ressalta o comportamento fanático durante a perseguição. É como se Paulo quisesse dizer “perseguia fanaticamente”. O verbo “devastar”, usado no imperfeito (evpo,rqoun) tem um sentido de ação progressiva e final, ou seja, Paulo perseguia fanaticamente a Igreja de Deus, intencionado a destruí-la. 

Um segundo texto da mão do próprio Paulo em que é mencionado o seu passado de perseguidor é Fl 3,6: “Quanto ao zelo, (era) perseguidor da Igreja”. Esta linha faz parte do mais preciso conjunto de informações sobre o histórico judaico do apóstolo. Paulo enaltece sua própria história. Ela consta de três qualidades congênitas (Fl 3,5: “do povo de Israel; da tribo de Benjamim; hebreu, filho de hebreus”), e outras três adquiridas (3,6: “quanto à Lei, fariseu; quanto ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça que há na Lei, irrepreensível”). Aqui o perseguidor aparece sem especificações. Apenas mostra que é o zh/loj que determina e qualifica o papel de Paulo como perseguidor. As frases são sumárias, abreviadas. Mas não escondem uma personalidade excitada e impetuosa. Sua linguagem se aplaca, porém, no verso seguinte (v. 7: “...o que era para mim lucro, tive-o como perda, por amor de Cristo”). Com isso quer ele indicar que somente em Jesus Cristo sua vida alcançou um equilíbrio estável. 

Também em 1Cor 15,9 a menção de Paulo sobre o passado de perseguidor está matizada pela graça. O Senhor Ressuscitado aparecera também a ele. Por isso se reconhece como apóstolo, ainda que não digno, porque “perseguiu a Igreja de Deus”. Mas “pela graça de Deus sou o que sou” (v. 10). Neste caso a acentuação incide na nova condição pessoal que a eleição como apóstolo lhe agraciou. Se antes ele era “como um abortivo” (v.8) o encontro com o Senhor, ainda que perseguidor, fora algo tão extraordinário como uma criança, já morta, nascer para a vida. E o antigo perseguidor aderiu à graça a ponto de trabalhar “mais que todos eles” (v.10). 

Todas estas notícias acerca do vigor persecutório de Paulo estão inseridas em narrativas ou reflexões relativas à nova história, e ao novo homem, que começou a ser forjado a partir de Damasco. Mas a linguagem empregada indica que ele se empenhava por completo e estava totalmente absorto no que se tornara uma “atividade habitual”.  Todavia, para falar ao modo do próprio Paulo, em Damasco o Senhor se “revelou” a ele (Gl 1,12); deu-se a conhecer. E tal revelação estava orientada a constituir Paulo como o evangelizador dos gentios (1,16). Ao cristão de Damasco, Ananias, o Senhor insistiu: “Vai, porque este homem é um instrumento de minha escolha para levar o meu nome...Eu mesmo lhe mostrarei quanto lhe é preciso sofrer em favor do meu nome” (At 9,15-16). Conversão e chamado ao ministério estavam inseparavelmente unidos. 

Em termos concretos, para o perseguidor tudo aquilo significaria integrar na própria existência o destino do perseguido.   Paulo é discreto ao extremo em falar das vivências subjetivas daqueles dias de Damasco, mas o tempo mostrou que foi a mais esmagadora experiência de sua vida. A partir de então, avassalado por seu Senhor, ei-lo familiarizado com a existência do evangelizador perseguido. É justamente o que confessa em 2Cor 11,23-28, num confronto comparativo entre o seu ministério e o de seus adversários. Seu ministério tornou-se mais credível porque se destacou pelas “fadigas...prisões... açoites... cinco vezes os quarenta golpes menos um ... três vezes flagelado... uma vez apedrejado...”.

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SÃO PAULO E O SENTIDO TEOLÓGICO E EXISTENCIAL


3.2 – São Paulo e o seu sentido teológico e existencial

Mais de uma vez no seu epistolário Paulo faz menção daquela realidade surpreendente que o alcançou e o avassalou de um modo tal que alterou profunda e radicalmente o curso de sua vida. Mas em nenhum momento ele deixa vislumbrar traços psicológicos ou pormenores externos do que lhe sucedera. Tudo permanece sob as cortinas do silêncio. Quando escreve sobre o acontecido, já se vão aproximadamente vinte anos do fato. Mais do que recordação descritiva, após cuidadosa maturação, o apóstolo se ocupou em interpretar tudo sob o signo da intervenção direta e imediata de Deus. Ademais, ao referir aquele acontecimento extraordinariamente singular, ele o faz de um modo tal que seu discurso se entrelace intimamente com a exposição do seu Evangelho. Parece que o próprio Paulo quer ver relativizadas aquelas suas experiências individuais e psicológicas. Conta mais, para ele, que tudo aquilo seja visto nos quadros dos desígnios de Deus em vista do Evangelho de Jesus Cristo. Foi um evento de pura graça (1Cor 15,10).
                        
Escrevendo aos Gálatas Paulo indica qual era o conceito que, a partir do que experimentara em Damasco, ele tinha de si mesmo. Sublinha a iniciativa gratuita do Pai, a quem aprouve (euvdoke,w: comprazer-se; considerar bom) “separá-lo desde o seio materno” e o “chamou por sua graça” para que evangelizasse entre os gentios (1,15-16). Aquela foi a hora da gratuidade do seu chamado. A expressão “Desde o seio materno” relembra o chamado de Jeremias (Jr 1,5) e do Servo (Is 49,1.5). Desde Damasco a inteireza da vida do apóstolo recebera novo sentido e novo destino. A partir de então Paulo começava a reconhecer que não mais pertencia a si mesmo. Deus mesmo estava por trás de todos aqueles desdobramentos. E somente a partir de dEle era possível compreender tudo quanto lhe sucedera. A decisão soberana do Senhor se fazia conhecer somente naquele instante, mas era já um desígnio prefixado desde os primeiros instantes de sua existência. Por isso mesmo o “seu evangelho” não podia ser colocado em dúvida.
                        
Em 2Cor 4,6 Paulo alude ao mesmo fato de Damasco em termos de uma nova criação: “Do meio das trevas brilhe a luz! Foi Ele mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo”. Na primeira criação Deus fizera surgir a luz no caos primordial. Em Damasco Deus fizera surgir a luz no coração de Paulo, cujo brilho procede do encontro com Jesus Cristo. Daí em diante ele passou a “conhecer a glória de Deus”. Conexo a tal “conhecimento” está também a missão. 
                        
Em diálogo com os Filipenses indica que no caminho de Damasco “foi alcançado por Jesus Cristo” (Fl 3,12). Então aderiu a Ele. Sua história pessoal fora, a partir daquele momento, colocada sobre outros trilhos. Suas forças e energias visaram participar dos sofrimentos de Jesus Cristo e de sua ressurreição pois que fora encontrado pelo Ressuscitado (v. 11). A adesão apaixonada de Paulo desencadeou uma total mudança em sua vida. Sua linguagem forte retrata a intensidade da reviravolta: o que era “lucro” tornou-se perda. O que antes plenificava sua vida, o que considerava santo, pelo qual havia lutado com todas as suas forças desfigurou-se em “esterco” (3,7.8).
                        
Na realidade, a conversão desencadeada por aquele encontro redirecionou absolutamente a vida de um homem já profundamente religioso. O fariseu zeloso, que cultuava a Lei mosaica, na realidade estava voltado sobre si mesmo. Para alguém tão destacado no farisaísmo, mais do que seus coetâneos (Gl 1,14), Deus teria coroado os seus méritos. A observância plena e minudente da Lei fazia dele um homem com muitos “direitos” diante de Deus. Tratava-se, pois, de confiança em si mesmo, dito melhor, era auto-suficiência religiosa ou orgulho autocrata de quem acedia por suas próprias forças à salvação.
                        
Para um judeu de tantos brios religiosos, aferrado à Lei e seguro de sua fidelidade, o novo caminho requeria muita luta interior. Somente uma experiência muito intensa e muito forte poderia sustentar seu novo percurso. Quem antes era “maldito” porque fora “suspenso ao madeiro” (Gl 3,13) revelou-se como Salvador crucificado e ressuscitado. É a Ele que então Paulo entregou-se em obediência de fé. A única medida da verdade do homem era o dom de Deus revelado em Jesus Cristo. Por isso mesmo a vida do “alcançado pelo Senhor” recebeu uma outra expressão e sentido: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 3,20).
                        
Lendo com atenção os textos paulinos é possível reconhecer os traços psicológicos típicos do convertido: “Adesão total à nova causa e polêmica denúncia da falsidade da posição sustentada anteriormente; forte e inabalável consciência da coerência da escolha feita; segurança e coragem não obstante inúmeras adversidades e contestações. Fruto de uma descoberta pessoal, sua fé se apresenta vigorosa e cálida de amor. Ao mesmo tempo é intolerante e severo nos confrontos com os adversários”. Compromissos de conveniência e meias medidas não eram de sua têmpera.

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SÃO PAULO E A EXPERIÊNCIA PRÓXIMA A DAMASCO


3 – São Paulo e a experiência próxima a Damasco

3.1 – As narrações

As primeiras imagens que afloram à mente à mente quando se pensa na conversão e/ou vocação de Paulo é aquela presente em At 9,1-19a. É a grande mudança na vida de Paulo. Toda a sua existência pessoal passa, a partir de então, por uma profunda e total transformação. Para Lucas, autor do livro dos Atos, não se tratou apenas de um acontecimento ligado a alguma forma de evolução psicológica ou religiosa do interessado, mas de uma intervenção direta e envolvente de Cristo Ressuscitado

O que aconteceu nas vizinhanças de Damasco faz parte de um plano divino. A importância de tal evento recebeu tanto destaque no livro dos Atos que chega a ser reapresentado ainda outras duas vezes (At 22,3-21; 26,4-23). Nestes últimos dois casos o Paulo lucano narra sua experiência em tom autobiográfico. Trata-se de pronunciamentos de Paulo, o primeiro ante o povo judeu no templo de Jerusalém, após o seu aprisionamento (At 22,3-21); já o segundo foi diante do rei Agripa, da irmã deste, Berenice, e ainda diante do procurador Festo (At 26,2-23). 

Coletando os dados das três narrativas é possível compor a seguinte seqüência: Paulo, munido de cartas do sumo sacerdote, deveria proceder com dureza com os judeus de Damasco que se fizeram cristãos (9,2). Ao aproximar-se da cidade, ao meio dia, repentinamente, foi envolvido por uma luz vinda do céu (22,6: “...brilhou ao redor de mim”; (26,13: “...mais brilhante que o sol...circundou a mim e aos que me acompanhavam”). Paulo caiu por terra (9,4; 26,14: também seus acompanhantes). Jesus Cristo se deu a conhecer mediante uma voz. Somente Paulo a ouviu (9,4; 22,7; 26,13). O Senhor lhe ordenou de ir à cidade; lá lhe seria dito o que deveria fazer. Por causa da luz, Paulo se tornou cego. Um certo Ananias, um judeu cristão de Damasco, recebeu do Senhor a ordem de dirigir-se até Paulo, que “está em oração” (9,11c). Quando Ananias lhe impôs as mãos, Paulo recobrou a vista, recebeu o Espírito Santo e foi batizado (9,17s). 

Em nenhum momento do seu epistolário Paulo explicita o que lhe aconteceu realmente em Damasco. Limita-se a freqüentes alusões. Deixa entrever que suas comunidades sabem o que se passou. Quando ele se qualifica de “apóstolo por vocação” (Rm 1,1), “apóstolo de Cristo Jesus por vontade de Deus” (1Cor 1,1), “apóstolo das nações” (Rm 11,13), “apóstolo - não por parte dos homens, nem por intermédio de um homem, mas por Jesus Cristo e Deus Pai...” (Gl 1,1), está ele a indicar que o ocorrido tinha um conteúdo vocacional. 

Quanto ao modelo narrativo dos acontecimentos de Damasco, apresentados  no livro dos Atos, Lucas parece ter seguido um esquema já presente nas histórias judaicas de conversão. A mais semelhante é a de Heliodoro. Este primeiro ministro de Seleuco IV recebeu do rei a ordem de se apoderar dos tesouros do templo de Jerusalém. Ao entrar no templo uma luz do céu o impediu de realizar seu intento. Caiu por terra e uma escuridão profunda o envolveu. Então desistiu do empreendimento, confessou-se pecador e prometeu anunciar a todos os homens a grandeza daquele lugar sagrado

Mais do que buscar elementos que permitam interpretar descritivamente o que ocorreu nas proximidades da capital síria, vale observar o que Paulo relata aos judeus de Jerusalém. Em At  22,17-18.21 ele está a falar do que lhe acontecera. E acrescenta: “Depois, tendo eu voltado a Jerusalém, orando no templo, sucedeu-me entrar em êxtase. E vi o Senhor que me dizia: ‘Apressa-te, sai logo de Jerusalém... porque é para os gentios... que quero enviar-te’” (22,17-18.21). Esta visão, no templo, parece orientar o sentido do que acontecera no caminho de Damasco. Desapareceram a luz, a queda, a cegueira. Agora verificou-se uma experiência espiritual à qual ele acedeu estando em oração. E então conheceu o projeto de Deus: a missão aos gentios. A partir da experiência de Damasco Paulo estava predisposto ao encontro com Senhor. 

Seguindo esta primeira experiência fundante, o livro dos Atos mostra uma série de “visões”, distintas do acontecimento de Damasco, mas vinculados a ele como desdobramentos consequentes. Tudo estava orientado à missão evangelizar os gentios. Assim em 16,9-10 (visão do macedônio), ou então em 18,9-10 (missão em Corinto), ou ainda 23,11 (missão de testemunhar também em Roma). O que se pode observar nesta seqüência é que a partir do primeiro acontecimento, todas as vicissitudes enfrentadas por Paulo estavam sob a regência do Senhor Jesus. 

Destas rápidas observações o que se pode dizer do que aconteceu a Paulo no caminho da perseguição, próximo a Damasco, faz parte “daquelas formas de comunicação religiosa que na tradição bíblico-judaica são apresentadas como visões e revelações de Deus. Trata-se de uma experiência de caráter religioso que implica, além do protagonista humano, uma referência à realidade de Deus, que por si não cai sob o controle dos sentidos e, portanto, não pode ser objeto de investigação historiográfica. A credibilidade daquele evento pode ser constatada por aquilo que ele suscitou, isto é, uma mudança radical no modo de pensar e de agir de quem até então se destacava como perseguidor. 

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SÃO PAULO UM EVANGELIZADOR COM DÚPLICE SUBSTRATO CULTURAL


2.3 – São Paulo um evangelizador com dúplice substrato cultural

                        
Face o esforço dos adversários de Paulo de impor aos cristãos vindos do paganismo tradições, observâncias e usos judaicos, ele reagiu com palavras muito fortes, indicando ser um homem de reações impetuosas. Entretanto sua vigorosa contraposição aos “judaizantes” não obliterou sua feição religiosa e matização teológica profundamente judaicas. O epistolário, visto como legado escrito da sua obra evangelizadora, explicita, quer na forma quer no conteúdo, esta transversalidade cultural radicada no judaísmo.
                        
O uso abundante que faz do Antigo Testamento, embora servindo-se da Septuaginta, trai muitas similaridades com o modelo dos autores de Qumran e de outros autores do período intertestamentário. Por vezes acomoda textos da Escritura ou confere novo sentido às passagens que cita, outras vezes recorre a alegorização. Até mesmo retira expressões de um determinado contexto original e as reaplica em quadros temáticos bem distintos. Intervenções com este formato eram bastante usuais entre os mestres do judaísmo. 

Na realidade, o Antigo Testamento é muito importante para o pensamento teológico paulino. Ele salienta que o “evangelho de Deus” era “prometido por meio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras” (Rm 1,2). Até a Lei, motivo de tanta controvérsia, tem um valor pedagógico muito significativo: ela preparava para os tempos de Jesus Cristo (Gl 3,24). Parece que, para Paulo, o Antigo Testamento sem o Novo seria uma promessa não cumprida. E o Novo, sem o Antigo, seria uma realização não prometida e nem esperada.
                        
Por outro lado, como já afirmado acima, Paulo tinha em mãos a arte discursiva grega. E quando quis brandiu-a com habilidade. Suas epístolas traem esquemas de argumentação próprios dos estóicos. São as chamadas “diatribes”. Trata-se de um modo de discorrer em estilo familiar e coloquial, desenvolvido mediante debates vivazes com um interlocutor imaginário. As frases são breves e questões são interpostas. Bons exemplos deste formato discursivo podem ser encontrados em Rm 2,1-20; 3,1-9; 9,19-21.
                        
Assim como os discursos de Jesus ilustram imagens da vida agrária da Galiléia, os textos de Paulo retratam contextos da cultura urbana de fundo helenístico. Também para este caso podem ser aduzidos exemplos. É o caso das competições olímpicas aplicadas ao esforço evangelizador de Paulo: “quanto a mim, é assim que corro... é assim que pratico o pugilato...” (1Cor 9,24-27). Não faltam termos do mundo comercial (Fil 18), ou a terminologia jurídica (Gl 3,15; Rm 4,1-2). Até mesmo a compra e venda de escravos, vigente na época, emprestou linguagem a Paulo (Rm 7,14; 1Cor 7,22). A lista pode ser longa quando se quer reconhecer traços helenistas na abordagem de temas como “liberdade” (Gl 5,1.13), ou “consciência” (1Cor 8,7.10.12; 10,25-29; Rm 2,15), ou “natureza” (Rm 2,14). Também o vocabulário paulino guarda muitas afinidades como o mundo helenista. Apenas a título exemplificativo, pode-se observar Fl 4,8: “Finalmente irmãos, ocupai-vos com... tudo o que é amável (prosfilh,j), honroso (eu;fhmoj), virtuoso (avreth,), ou que de qualquer modo mereça louvor (e;painoj).
                        
Esta dúplice matriz cultural foi a condição de possibilidade para que o sentido da história e da pessoa de Jesus Cristo fosse compreendido na sua originalidade histórica e cultural mais plena. Mas também ensejou o anúncio do seu nome e da sua mensagem para fora das fronteiras da Palestina. Sem Paulo, profundamente arraigado ao fecundo caudal religioso do Antigo Testamento e do judaísmo, dificilmente o cristianismo teria sido conhecido em sua genuinidade. Tampouco teria dialogado com o mundo grego e, em seu meio, lançado raízes profundas. Ele podia dizer com veracidade: “Para os judeus, fiz-me como judeu...para os que vivem sem a Lei, fiz-me como vivesse sem a Lei... Tornei-me tudo para todos” (1Cor 9,2o-22).

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SÃO PAULO E SUA FORMAÇÃO NA ESCOLA DE GAMALIEL


2.2 – São Paulo e sua “Formação na escola de Gamaliel”

                        
Se a cultura helênica deixou suas marcas na formação e no pensamento de Paulo, sua personalidade foi ainda mais sulcada pela força das tradições e da herança familiar judaica, nele incutidas desde o berço. Por isso mesmo, em Tarso, tudo faz pensar assim, freqüentou assiduamente a sinagoga. Foi exposto, desde os seus primeiros dias, e ao longo de toda a sua formação, ao judaísmo helenizado, que deixou fortes traços no seu modo de se expressar. Por várias vezes encontramo-lo reafirmando, com sentimentos elevados, sua originária pertença à nação judaica. A mais vigorosa está em Filipenses 3,5: “Circuncidado ao oitavo dia; da raça de Israel, da tribo de Benjamim; hebreu, filho de hebreus; quanto à Lei, fariseu”.
                        
Seguindo estas palavras do apóstolo, é possível observar quanto segue: alguém circuncidado ao oitavo dia pode ser filho de um prosélito. Paulo, porém, é da “raça de Israel”. Nem todos os descendentes de Israel, especialmente os da diáspora, tinham condições de expor sua genealogia. Mas Paulo asseverava que era da tribo de Benjamim. Mas mais ainda, quando alguém afirma que é “hebreu, filho de hebreus” está reivindicando, não apenas a nacionalidade judaica. A afirmação indica a descendência de uma família palestina, ainda que esta viva fora de sua terra.  Nada surpreende, pois, que um “hebreu, filho de hebreus”, fosse enviado por sua família, para progredir no judaísmo, em Jerusalém.
                        
Aliás, já como cristão, em suas cartas, Paulo deixa transparecer um antigo e grande apreço pela cidade de Jerusalém. Para ele é aquela cidade o ponto de partida para anunciar o Evangelho (Rm 15,19). Também promoveu uma coleta em favor dos “pobres de Jerusalém” (2Cor 8,14s). Paulo nos fala ainda das viagens que fez a Jerusalém (1,18; 2,1). Foi lá que ele se envolveu profundamente com o farisaísmo, sob os auspícios de Gamaliel, de quem, dificilmente, algum fariseu escaparia à sua influência. Com seu grande mestre Paulo mergulhou profundamente no farisaísmo, marcando decisivamente sua identidade em relação com a Lei. E Jerusalém era o principal centro, provavelmente o único, do farisaísmo.
                        
Na tradição rabínica o estudo surge como uma das características fundamentais dos fariseus. Textos de Flávio Josefo, de Fílon e dos mestres rabinos mais respeitados realçam com muito vigor a atenção deste grupo à causa do estudo da Lei. O caminho da santidade estava ligado ao conhecimento meticuloso da mesma. Para melhor preservar sua pureza ritual, tendiam a viver em grupos. Isso também favorecia o debate sobre as questões mais diversas sobre a Lei, e a busca afanosa da interpretação mais precisa. A atmosfera era ardorosa, com discussões acaloradas, bem ao modo dos grupos de elite. As altercações, as vezes, eram intermináveis, com produção excessiva de sutilezas secundárias, que ocupavam grande parte da atividade dos sábios.
                        
É contra este fundo que melhor se podem ler as palavras de Paulo acerca de sua juventude: “...e como eu progredia no judaísmo mais do que muitos compatriotas da minha idade, distinguindo-me no zelo pelas tradições paternas” (Gl 1,14). Há um tom típico dos fariseus na expressão “zelo pelas tradições paternas”. Também a comparação e superação em relação aos companheiros de mesma idade, também empenhados no judaísmo, sugere um contexto de competição, de destaque e de elite. E Paulo se orgulhava de ser tão bem sucedido. Era de personalidade combativa. 

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SÃO PAULO E OS ASPECTOS DE SUA FORMAÇÃO


2 – São Paulo e os aspectos de sua formação
           
2.1 – Formação Inicial, “média” e ambiente cultural

Tarso fora um berço de muitos e importantes mestres da filosofia. O fundador da escola estóica, Zenão de Cicio, nascido em Chipre, é filho de um homem de Tarso. Mas o estoicismo teve ainda outros mestres oriundos de Tarso: um outro Zenão, sucessor de Crisipo, esteve à frente da escola estóica. Também os irmãos Atenodoro, importantes filósofos do estoicismo são de Tarso. Um deles foi mestre do imperador Augusto. O platônico Nestor também era originário da cidade. O mesmo se pode falar de Lísias e Diógens, epicuristas.
                        
O geógrafo e historiador Estrabão, que teve contactos diretos com a cidade, escreve: “Os habitantes de Tarso dedicam-se tão avidamente, não só à filosofia, mas também a todo o conjunto da educação em geral, que já ultrapassam Atenas, Alexandria e qualquer outro lugar que possa ser citado onde haja escolas e palestras de filósofos. Mas Tarso é tão diferente das outras cidades que os homens que gostam de aprender são todos nativos, e estrangeiros não costumam demorar-se ali. Nem estes nativos ficam por ali,  pois completam sua educação no exterior. E quando completam têm prazer em morar no estrangeiro e bem poucos voltam para casa... Além disso, a cidade de Tarso tem todos os tipos de escolas de retórica e, em geral, não só tem uma população próspera, como é bastante poderosa, dessa forma mantendo a reputação de cidade-mãe” (Geografia 14,5,13).
                        
O que impressionou o antigo historiador não foi a superioridade ou antiguidade do seu sistema educacional, mas a seriedade, o entusiasmo e o empenho com que os habitantes buscavam instrução. A saída da terra natal estava ligada ao esforço de galgar a maiores conhecimentos. Filósofos (Atenodoro e Nestor), que mais tarde se tornaram governantes da cidade, muito se empenharam em promover a instrução em Tarso.
                        
Nas escolas as crianças, a partir dos seis anos, eram ensinadas nos rudimentos de leitura, escrita e aritmética. Também eram educadas para o respeito às instituições do estado e da religião. Era tradição entre as famílias judaicas da diáspora, primar pela boa formação do seus filhos. Além da educação civil, eram muito esmerados na educação religiosa. Desde suas primeiras iniciações à leitura eram ensinados nas observâncias que formavam a base de sua identidade. A partir do treze anos deveriam observá-las. Fílon escrevia: “Todos os homens anseiam preservar seus costumes e leis, e os da nação judaica mais que todos os outros; pois, considerando que receberam seus oráculos diretamente do próprio Deus, e tendo sido instruídos nessa doutrina desde a mais tenra idade, trazem na alma as imagens dos mandamentos”. Na realidade, os meninos judeus, desde a infância, tinham que viver em dois mundos: a convivência com os pagãos e a fidelidade ao judaísmo. E aprender de ambos.
                        
Em um contexto assim Paulo deve ter conhecido a LXX, as Escrituras para os judeus de língua grega. Desde a infância aprendiam as “Sagradas Letras”, como usavam chamar (cf. 2Tm 3,15). Conheceu-as em profundidade. Para um bom judeu elas (as Escrituras) eram uma fonte perene de discernimento. Nos escritos de Paulo há aproximadamente noventa citações diretas. Ademais, para um “hebreu, filho de hebreus” (Fl 3,5) é bem possível que conhecesse, desde casa, também o hebraico/aramaico (cf. At 22,2).
                        
Há ainda que considerar que um filho de um cidadão romano, residente em uma cidade do porte de Tarso, deveria aprender a atuar bem no mundo helenístico. Era preciso ter bom domínio sobre a língua grega falada. Ademais, até mesmo a leitura e interpretação da Septuaginta requeria um bom conhecimento da língua grega escrita. Vale acrescentar ainda que até na Palestina as crianças judias eram ensinadas a ler e interpretar Homero. Nas escolas dos judeus da diáspora, então, com  muito maior desenvoltura tais textos eram manuseados, lidos e retransmitidos. Aliás, deveria ser um aprendizado exigente, que empenhava muita disciplina. Nos manuscritos da época nem sempre as palavras estavam separadas umas das outras e não havia pontuação.
                        
Nas escolas gregas, quando o menino alcançava a adolescência, começava então, sua formação no “gimnasium”. A formação consistia em atividades físicas e atléticas, matemática e geometria, artes, filosofia e, com grande ênfase, a retórica. Aliás, da retórica exercitada em Tarso, Estrabão, impressionado, escreveu sobre a “facilidade predominante entre os habitantes de Tarso, pela qual eles podiam falar imediatamente de improviso, e sem cessar, sobre qualquer assunto” (Geografia 14,13-14). Difícil saber qual era a aceitação, por parte das famílias judaicas, dos tais “ginásios” e da instrução neles ministrada. Todavia, Fílon, enaltecendo, interpreta-os como um lugar excelente para treinar “o corpo com ginástica e regras atléticas, para deixá-lo vigoroso e saudável e lhe dar facilidade para ficar em pé e se mover, não sem elegância e graça, e educando a alma com letras, números, geometria e todo o tipo de filosofia”.
                        
É muito difícil aquilatar em qual medida Paulo recebeu toda esta formação. A provável boa posição social de sua família sugere que estava ao seu alcance aceder a tal programa educativo. Mas Paulo parece negar. Segundo suas próprias palavras, ele se apresenta pouco afeito a persuasões de valor retórico. Em 1Cor 1,17 salienta que Cristo o enviou para anunciar o Evangelho, mas “sem recorrer à sabedoria da linguagem, a fim de que não se torne inútil a cruz de Cristo”. Na mesma epístola, alguns passos adiante, em 2,4, volta ao tema: “Minha palavra e minha pregação nada tinham da persuasiva linguagem da sabedoria, mas eram uma demonstração de Espírito e poder”. Em 2Cor 11,6 não se reconhece bom orador: “Ainda que eu sou imperito no falar, não o sou no saber”. Aliás, na comunidade de Corinto, o grupo melindrado com Paulo parecia reclamar uma retórica mais atilada: “Pois as cartas, dizem, são severas e enérgicas, mas ele, uma vez presente, é um homem fraco e suas linguagem desprezível”.
                        
Todavia, há bons motivos para interpretar a realidade por um outro ângulo. Em 1Cor 2,1-2 Paulo deixa clara a razão pela qual sua linguagem não tem os engenhos retóricos, muito em voga no seu tempo, aos quais apelavam os filósofos itinerantes. Ele se Explica: “Quando fui ter convosco... não me apresentei com o prestígio da palavra ou da sabedoria... pois não quis saber outra coisa entre vós, a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado”. Seu pensamento estava voltado à genuinidade da fé em Jesus Cristo: “Para que a vossa fé não se funde na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus” (1Cor 2,5). Tratava-se, portanto, de uma opção do missionário.
                        
Uma análise atenta dos escritos paulinos deixa entrever que Paulo tinha em mãos a arte discursiva grega. Ele poderia, se assim julgasse conveniente para a mensagem do evangelho, recorrer às habilidades de linguagem retórica, para as quais, provavelmente, exercitara-se já em Tarso. Estudos comparativos das últimas décadas esclarecem que a “retórica de Paulo sugere proficiência e convicção que é improvável ter adquirido sem longa prática e, talvez, também longos estudos”. O texto de 2Cor 11,1-12,15, escrito “com um pouco de loucura de minha parte” (11,1) evidencia qualidades discursivas profundamente arraigadas. Betz salienta que suas cartas, pelas “habilidades retóricas, pela cuidadosa composição e pela elaborada argumentação teológica”, constituem-se em obra-prima de literatura.
                        
Estes traços dos escritos paulinos deixam entrever que nosso personagem, “hebreu, filho de hebreus”, cresceu em um ambiente urbano, com muitos contactos com pessoas de outras raças. Desde sua metrópole de nascimento pôde experimentar, quase que diariamente, a abertura ao mundo. Pessoas de outras culturas e mentalidades não eram um fenômeno estranho para ele. Desde sua adolescência e juventude deve ter tido aproximações com outros hábitos, outros costumes e outras formas de pensamento. E esta retaguarda plural, urbana e cosmopolita configurou a sua linguagem. A título exemplificativo, é possível vê-lo servir-se de termos e expressões típicos da antropologia platônica: corpo, espírito, alma (1Ts 5,23). Ainda outro exemplo: guardando semelhanças com filósofos neoplatônicos e estóicos, Paulo contrapõe o “homem interior” ao exterior; a precariedade das coisas visíveis contrasta com a imutabilidade das invisíveis (2Cor 4,16.18).

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